25 Mai Quinta de Lemos – Por amor às origens
A imponência majestática da Serra da Estrela ao fundo, tingindo de negro um irrepreensível azul celeste que domina todo o horizonte, é o que nos prende a atenção. Dos prédios incaracterísticos que vão ladeando os primeiros quilómetros da Estrada Nacional 231, que liga Viseu a Nelas e que em breve darão lugar a pequenas vinhas cuidadas, não ficará senão uma brevíssima lembrança.
É a Serra que olharemos quase até virarmos à direita em direcção a Silgueiros, mesmo quando escondida pelas cúpulas de velhos pinheiros ou de ancestrais oliveiras que dominam a paisagem. Depois, como por magia, as vinhas começam a atrair a nossa atenção, intercaladas por velhos casarios de granito e por imponentes moradias, mescla de arquitectura centro-europeia e da fértil imaginação edificadora dos seus proprietários.
Vinhas novas, na sua maioria, a avaliar pelo compasso em que foram plantados os bacelos, permitindo o uso dos tractores no auxílio das tarefas agrícolas. Irrepreensivelmente tratadas, bem podadas, um mimo para a vista. Vinhas tão novas como os enólogos que delas cuidam e que se têm empenhado nas últimas décadas em recuperar para o vinho do Dão, nestas margens ensolaradas do rio a que roubou o nome, o prestígio e, sobretudo, a qualidade de outros tempos.
É com um desses novos artesãos do vinho que vamos conversar, cruzadas as estreitas ruas de Passos de Silgueiros, pequena aldeia beirã, riquíssima na tradição etnográfica da região, em direcção à Quinta de Lemos, sonho tornado realidade pelo espírito empreendedor de Celso de Lemos, filho da região, cedo emigrado para a Bélgica de onde, após os estudos em engenharia química e quase duas décadas de trabalho na área do têxtil, regressou para fundar a Abyss & Habidecor, a empresa têxtil nacional que, segundo o Wall Street Journal, fabrica as melhores toalhas do mundo, utilizadas por Barack Obama, por Putin e pelos clientes dos exclusivos hotéis Burj Al Arab, no Dubai e Grand Hyatt, em Hong Kong.
“O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos”
Conversa à volta do vinho
Hugo Chaves, o engenheiro alimentar especializado em enologia a quem Celso de Lemos incumbiu a tarefa de fazer vinho do Dão nas terras de família, acrescentadas de uns tantos hectares adquiridos para o efeito, tem o ar atarefado dos homens da lavoura a quem o negócio prospera. Numa sala enorme, virada à vinha, sentado a uma secretária coberta por papéis com anotações à mão e por revistas de enologia, recebe-nos indo directo ao assunto:
Então o que querem saber?
Comecemos pelo trajecto académico e profissional, que acabou por te trazer aqui, à Quinta de Lemos.
Eu estou aqui desde 1997. Já lá vão 18 anos. Tinha acabado de fazer um Bacharelato em Engenharia Alimentar em Viseu e fui convidado para vir para aqui, porque tinha umas relações familiares com o Celso que é o proprietário. A ideia inicial não era fazer algo destas dimensões. Era criar um espaço onde pudesse vir descansar com a família e trazer alguns amigos e clientes e onde se produzisse um bom vinho do Dão.
Ele tem um amor desmedido a esta terra. A Viseu. Para terem uma ideia, um dia estávamos juntos numa feira de vinhos em Dusseldorf e ele esteve duas horas a ouvir o relato do Académico de Viseu. – Hugo com um sorriso rasgado.
Já trabalhando aqui, fui estudar enologia para Trás-os-Montes. O meu percurso académico foi este, sempre acompanhado pelo trabalho, que aqui na Quinta de Lemos, começou, como disse, há 18 anos, adquirindo as propriedades, plantando as vinhas, orientando a construção da adega.
Uma questão que te queríamos colocar porque ficámos surpreendidos ao chegarmos aqui, relaciona-se com o compasso da vinha. As vossas vinhas não têm a distância habitualmente usada na região, pois não?
Engraçado que tenham reparado. De facto, não têm o mesmo compasso e eu passo a explicar porquê. No período que mediou entre 1997, quando o projecto começa e 2000, quando iniciamos a plantação das vinhas, deram-me a possibilidade de fazer diversos estágios, na Califórnia, em Bordéus, na Borgonha, para perceber melhor este mundo dos vinhos.
Por outro lado, à medida que fomos ganhando dimensão de área o projecto começou a ganhar outros contornos. A ideia inicial, de fazer um vinho para receber amigos e clientes deu lugar a outra, bem mais ambiciosa de criar um dos melhores vinhos do mundo, usando as nossas variedades e a nossa gente. Por isso, os estágios que realizei e as visitas que fiz a vinícolas do mundo inteiro tinham um único objectivo, perceber como havíamos de plantar a vinha com a finalidade de atingir o objectivo de fazer um dos melhores vinhos do mundo. Acabámos por decidir que a melhor forma de plantio era a praticada em Saint Emillion e foi a que adoptámos.
A condução de 1 metro e meio por um metro, 6000 plantas de densidade. Tecnicamente, fiquei convencido que, para esta dimensão, este era o melhor método para a plantação da vinha em termos vitícolas e continuo convencido disso. Para mim é o melhor sistema de condução e a melhor densidade.
E porquê? Explica-nos um pouco os motivos dessa opção.
Porque a nossa região é muito semelhante em termos climáticos à de Bordéus, no caso a Saint Emillion, com uma única diferença que é o tipo de solo. Enquanto lá é argilo-calcário, nós aqui temos um solo de areia granítica, o que imprime um resultado completamente distinto aos vinhos.
Qual é o nosso maior problema aqui no Dão e isso é conhecido do produtor e do consumidor? É a constância. Podemos fazer o melhor vinho do mundo, mas só o conseguimos de 1 vez sobre 10. Não temos regularidade na qualidade da produção. Não é na quantidade é, sobretudo, na qualidade. Na regularidade da qualidade é que temos um problema grande, daí a desconfiança do consumidor e a não afirmação da região.
Hugo fala de forma pausada, lenta, como que para nos dar tempo para digerirmos as informações que vai transmitindo e para que possamos acompanhar a explanação técnica que entende necessária.
O que é que nos levou a introduzir este novo sistema que é único em Portugal, à excepção de uma quantas outras vinhas que foram plantadas por mim ou sob a minha supervisão? Eu com este tipo de plantio, com o dobro das plantas, produzo a mesma quantidade de uma plantação convencional. Isto é, o rendimento unitário de cada planta é aproximadamente metade do de uma planta numa plantação convencional.
Isso tem a ver com o compasso escolhido ou também tem a ver com a poda que é feita posteriormente?
É óbvio que depois tudo isso tem de ser ajustado, porque acabamos por ter um microclima diferente uma vez que temos uma área folhear muito superior ao normal, logo uma evapotranspiração muito maior, ora isso implica uma mentalidade diferente em relação à manutenção da vinha.
Mas, voltando atrás, o que nos levou a fazer este tipo de compasso foi o facto de que produzimos menos por planta e por isso, quando temos um determinado número de folhas, que são as fábricas que produzem os foto assimilados, que são canalizados para as uvas e que as amadurecem, se tivermos um número x de folhas e os nutrientes são canalizados para 4 uvas elas vão amadurecer muito mais rapidamente do que se o mesmo número x de folhas tiver de alimentar 8 uvas, logo vou ter uma maturação mais precoce, o que implica uma vindima muito mais cedo, o que nos permite ultrapassar o grande problema da região que acabei por não explicar antes e que é o equinócio de 21 de Setembro que vem sempre acompanhado de chuva.
Explicadas as motivações por detrás da opção técnica que tomou para o plantio da vinha, Hugo retoma o ritmo normal da conversa, substituindo a fala pausada e quase professoral por um tom coloquial e até acelerado em alguns momentos, como que querendo chegar rapidamente ao cerne da questão, o vinho que produz.
Em condições naturais, da forma como se trabalha a viticultura na região, e como sabem, no Dão as vindimas ocorrem no final de Setembro princípio de Outubro, estamos nós em plena época de chuvas. Se tudo correr bem não chove, dizem, mas nós não nos podemos permitir ao “se tudo correr bem”, por isso temos de vindimar antes de 21 de Setembro e para vindimar antes dessa data temos de antecipar a maturação e para antecipar a maturação, temos de produzir menos, daí termos de aumentar o número de plantas por metro quadrado, para que não se perca tanto rendimento.
Essa opção reflectiu-se na enxertia? Isto é, levaram em consideração as variedades que habitualmente produzem mais e as que produzem menos? Sabemos que o Jaen, por exemplo, produz muito mais do que o Touriga Nacional.
Não, porque nós aqui fazemos a nossa monda, não esperamos que o São Pedro a faça. – Hugo com um sorriso malicioso no rosto. – Cada variedade na Quinta de Lemos produz 4 toneladas de uvas por hectare. Se na Touriga temos de deitar abaixo 3 toneladas de uvas que são o excedente, se calhar no Jaen temos deitar 5, porque produz muito mais, na Tinta Roriz outras 5, no Alfrocheiro Preto, só 3 ou 4.
Nós fazemos essa monda. Mas, com tudo isto que expliquei, acabámos por produzir um vinho do Dão, com as castas do Dão, com as pessoas do Dão, mas com uma personalidade diferente e características bem distintas, porque temos uvas maduras mais cedo, acabamos por vindimar em Agosto. Se eu dissesse isso há uns tempos, diziam que eu era maluco.
Se bem que, lembro-me de, nas vinhas antigas, se vindimar em Agosto.
Ora aí tens. É que as vinhas velhas eram plantadas com este compasso. Até mais estreito. Eram tratadas manualmente e por isso duravam o dobro dos anos logo, por causa da idade, frutificavam cada vez menos, o que faz com que se diga hoje que (não só mas também) das vinhas velhas é que se fazem os grandes vinhos.
Voltando à Quinta de Lemos, acabámos por criar um estilo de vinho completamente diferente, porque sendo pioneiros no tipo de plantação, produzimos um vinho com um estilo próprio. Embora sejamos um vinho do Dão, somo-lo de forma bem diversa. O que ganhámos? Ganhámos uma regularidade na qualidade dos vinhos anual, por causa da vindima em Agosto, porque evitamos a chuva da vindima que é o factor que mais deprecia a qualidade do vinho. E um vinho com uma identidade.
E qual é essa identidade? Como definirias os vinhos da Quinta de Lemos?
São vinhos muito ricos, com muita estrutura. São vinhos que colocamos no mercado 5 anos após a colheita porque fazemos a sua estabilização natural e como são tão ricos, tão ricos, precisam de mais tempo para estabilizar. Não fazemos estabilizações físicas nem químicas, por isso precisam de mais tempo. Depois são vinhos com uma longevidade enorme. Temos vinhos com 10 anos que parecem que foram engarrafados ontem.
E que vinhos é que estás a fazer actualmente?
Temos 25 hectares de vinha, dos quais, 60% de Touriga Nacional, 20% de Tinta Roriz, 10% de Jaen e 10% de Alfrocheiro e temos um pouco de Encruzado, casta branca. A Touriga Nacional é uma das melhores castas que existem no mundo, que ladeia perfeitamente com um Merlot ou um Cabernet Sauvignon, ou um Syrah.
É uma casta quase completa, que faz um varietal de excelência e, que em vinhos de lote, dá logo uma outra dimensão ao vinho. A Tinta Roriz é uma casta que em Portugal é mal-amada por uns e adorada por outros, porque é uma casta que tem uns taninos que ou são muito secos, ou muito herbáceos ou muito vegetais. É uma casta que precisa de calor.
É o Tempranillo espanhol, só que Espanha tem um calor enorme, muito maior e mais seco que em Portugal e o solo é diferente. Por exemplo, aqui chovem cerca de 1200 a 1400mm de média anual e em Espanha 300, 400, mas lá as plantas nunca entram em stress hídrico e aqui entram, por ser um solo arenoso granítico, que não tem capacidade de retenção de água.
Nós, para a produzirmos, porque acho que é uma casta espectacular e que faz um vinho fantástico, embora tenha aquela característica seca, mas de que eu gosto e que dá um esqueleto aos vinhos de lote muito interessante, só produzimos as tais 750 gramas, fazemos cinco uvas, mas só aproveitamos os dois elos superiores do cacho.
Um cacho de Tinta Roriz tem um quilo de peso, em média, nós produzimos 750 gramas, menos do que o peso médio de um cacho, mas cortamos o corpo todo do cacho, só usamos os dois elos superiores junto ao pedúnculo. Reparem bem a quantidade de mão-de-obra que esta casta exige! Mas, produzimos um Tinta Roriz que é de chorar devagarinho. – Risos.
Fazem varietal de Tinta Roriz?
Sim, fazemos mono-varietais de tudo. A partir de 2008, a nossa gama passou a ser 4 varietais e 2 ou 3 blends. Queremos levar ao mundo inteiro o sabor específico de cada variedade. Se aqui estivesse o proprietário diria que os blends são uma perda de tempo. Para ele só deveríamos estar a fazer varietais.
Mas os vinhos do Dão, são por definição vinhos de lote.
Por isso temos os blends. Os que nos dão mais trabalho são os varietais porque exigem que as uvas saiam perfeitas da vinha e cheguem perfeitas ao lagar. E quando falo em varietal, aqui, significa 100% de uma casta, porque, como devem saber, pode ser feito um varietal com 85%, 15%.
Mas, voltando aos vinhos e às variedades, depois da Touriga e da Tinta Roriz, temos o Jaen que aqui fazemos com 3 cachos, o que exige muita monda, porque é uma casta que produz em abundância. Facilmente se chega a uma produção de 20 toneladas, nós só aproveitamos 4, o que quer dizer que deitamos abaixo cerca de 75% da produção.
O pessoal aqui diz que eu sou doido, mas tem de ser assim, por isso é que o nosso Jaen é tão concentrado, com tanta matéria fenólica, com tanto corante. Finalmente o Alfrocheiro Preto, que foi uma casta que eu mal plantei disse que não conseguiria fazer nada dela. Difícil.
Talvez por isso existam apenas 2 ou 3 produtores a fazer varietal de Alfrocheiro.
Mas quando fazem é muito bom! – Risos
Disseste e bem. Quando o fazem! Porque acontece fazerem bem em 2005, mas depois só sair igualmente bem em 2009. Ora, como expliquei, isso para nós não dá. Tem de existir constância, regularidade. Como é que torneámos a questão?
O Alfrocheiro tem um cacho muito denso, uma espécie de Pinot Noir, com um peso médio na casa dos 120 gramas. E tem um número de bagos tão grande para o tamanho de ráquis, que há uma percentagem de bagos, quando eles começam a aumentar o volume por altura do pintor – Hugo referindo-se ao período do ciclo de vida da uva, cerca de 40 a 50 dias após a fertilização do fruto, em que ela muda de cor, marcando o início da maturação – que não conseguem ficar expostos ao sol.
Ficam tapados pelos que vingaram, ainda verdes e sem a maturação necessária. Em anos excepcionais para o Alfrocheiro, quando chove na floração, provocando um aborto natural das flores a que chamamos desavinho e um período que antecede a vindima, seco e quente, fazemos um vinho maravilhoso.
Agora quando é que estas condições se reúnem? – Hugo fazendo um silêncio de suspense no final da pergunta retórica. – Quase nunca. Então, já doido com o Alfrocheiro e prestes a mandar cortar a vinha, comecei a reflectir como é que conseguiria provocar o desavinho, o aborto das flores. À mão era impensável.
Uma monda química era possível, mas nós não usamos venenos. Como é que eu ia conseguir aquilo? – Hugo aumentando o suspense. – Despontando a vinha no meio da floração. Se fizermos um corte na planta, nos ápices vegetativos, é como se estivéssemos a amputar a planta.
Fisiologicamente o que é que vai acontecer, naquele período muito preciso da floração, todos os nutrientes são canalizados para a produção do fruto, por isso se diz que a vinha não cresce nesse período, a seiva é canalizada para a floração, para que se transformem as flores em bagos, ao amputarmos os ápices vegetativos, estamos a provocar uma competição entre sarar uma ferida que foi aberta e a transformação da flor em fruto.
Conseguimos com isto um super resultado. Temos os cachos muito mais abertos, não temos problemas com podridões, porque numa situação normal, num cacho denso, os bagos internos que dão um caracter rústico aos vinhos, normalmente apodrecem. Se os abrirmos, estão todos podres.
Ora, encontrámos esta solução que é fácil e simples, porque no fundo, em vez de fazermos a desponta no final da floração para dar às plantas uma melhor exposição ao Sol, fazemo-la no início da floração e temos este resultado. Isto, normalmente, é considerado um problema fisiológico, em termos vitícolas, o desavinho é um problema fisiológico, mas no caso do Alfrocheiro é um benefício. Passámos a ter um vinho que é o nosso vinho mais vendável.
Quanto aos vinhos de lote?
Fazemos três. Um que é uma espécie de topo de gama, com um perfil mais internacional, estagiado 100% em madeira nova, com uma escolha meticulosa das nossas uvas mais ricas e do qual já produzimos cerca de 10 000 garrafas, o que é muito: é o Dona Georgina.
Depois produzimos outro que é o típico vinho do Dão, apesar de com um estilo muito próprio, 30% de madeira nova de estágio e usando as 4 variedades: é o Dona Santana. Fazemos ainda, dependendo dos anos, o Dona Louise, que é um vinho mais fresco, mais gastronómico, um vinho de sommelier, que é um blend que só não leva Alfrocheiro.
Finalmente temos um vinho branco 100% Encruzado.
Embora esteja mais ou menos subentendido no que disseste, gostava só de esclarecer um pormenor. A mão-de-obra é toda da região.
Sim, sim. Toda daqui.
Deve ter sido engraçado explicar que tinhas de desavinhar o Alfrocheiro ou de deitar ao chão 75% da produção de Jaen.
Nem queiram saber. Mal cheguei começaram-me logo a chamar de maluco. Isso foi engraçado, mas hoje respeitam-me. Os resultados estão aí.
Como é que vês este despontar dos vinhos do Dão, com os novos vinhos de quinta a afirmarem-se um pouco por todo o lado, na maioria dos casos desenvolvidos por enólogos da tua geração?
É moda. Há 50 anos só existia o vinho do Dão, eramos os maiores. Depois apareceram os vinhos do Alentejo e do Douro que rapidamente nos ultrapassaram. Eram vinhos muito diferentes dos que se faziam por aqui, muito mais encorpados, mais doces e sobretudo, muito mais chatos. Isso é fácil de comprovar.
Ainda há dias disse isto, vais jantar e colocas um vinho do Douro e outro do Dão na mesa e vais ver qual é a garrafa que se bebe. Duas pessoas, senão bebem-se os dois porque há falta de vinho. – Risos. – O que se bebe é o mais gastronómico, que é o Dão. É uma característica do solo, que faz com que os vinhos do Dão sejam vinhos mais frescos, com uma estrutura tânica que pede mais comida.
Enquanto um vinho do Douro pode ser um vinho social, que se bebe tranquilamente pela doçura e porque os taninos também são doces, o vinho do Dão é um vinho que pede comida e por isso, à mesa, bate qualquer outro. Um Douro ou um Alentejo, com a comida perde-se, torna-se cansativo e acabas por não conseguir bebê-lo.
Isso nunca me aconteceu, não conseguir acabar de beber o vinho. – Gargalhada geral.
O grande problema para o Dão é que acaba por ser avaliado e classificado num registo que não é o seu registo de consumo. As provas não são realizadas à mesa, durante uma refeição, são feitas “às secas” e isso reflecte-se nas escolhas, os vinhos do Dão levam sempre pancada, porque te afectam muito mais as papilas.
Só que 99% do vinho é consumido à refeição e não é aí que se avalia. Hoje, felizmente começa-se a dar alguma importância a isso com os Chefs de Cuisine e as suas harmonizações e aí os Dão começam a vir ao de cima. Claro que o trabalho dos enólogos melhorou muito o que era feito, mas não retirou as características essenciais da região.
O que é que um curioso de vinhos no Brasil, vai encontrar nos vinhos portugueses que não encontra num vinho do Novo Mundo?
A tradição. Vai encontrar a tradição. Vai encontrar um vinho feito em lagar, de forma artesanal, isso é impensável na Argentina, no Chile ou na Califórnia. Nós produzimos desta forma há centenas de anos. Isso é único. Só existe em Portugal, em França e em Itália. Na Quinta de Lemos somos umas crianças neste meio do vinho, mas há famílias a fazer vinho há mais de trezentos anos.
É muito tempo. Isso tem um peso. O peso da tradição. Não há como experimentar de mente aberta e quem o fizer, não tenho dúvidas que sentirá em cada copo o trabalho artesanal que está por trás daquela garrafa e o carinho e a dedicação que gerações e gerações dedicaram às plantas que dão o fruto que permite essa experiência.
Hugo é emotivo. Fala gesticulando para dar enfase às palavras que quer realçar e vive a sua paixão pelas vinhas que plantou intensamente. O Dão é o seu reduto, que defende intransigentemente.
O Sol está quase a pôr-se no horizonte, iluminando de encarnado as videiras despidas de cor, como que em repouso para um novo ciclo que em breve despontará. Abandonamos a adega da Quinta de Lemos, em direcção ao restaurante que domina a encosta e onde nos espera uma conversa à volta da cozinha portuguesa com o novíssimo chefe Diogo Rocha, a quem Celso de Lemos confiou a tarefa de fazer da Mesa de Lemos um dos melhores restaurantes de Portugal.
O homem põe tanto do seu carácter e da sua individualidade nas invenções da cozinha, como nas da arte.
Eça de Queiroz